Texto da conferência proferida no I Congresso Tocqueville, da Sociedade Toqueville, 7 de junho de 2024, na Academia Brasileira de Filsoofia.
Edgard Leite Ferreira Neto
O lugar preciso de Alexis Tocqueville (1805-1859) no pensamento ocidental é sempre disputado. Como Cheryl Welch anotou, há, no entanto, um certo consenso, desde Leo Strauss, que Tocqueville se encontra em algum lugar entre dois mundos: o da filosofia antiga e o da moderna tradição de defesa dos direitos que vai de Hobbes a Rousseau. Se leu, ou não, de forma profunda, Platão e Aristoteles ou qual a razão pela qual evitava os modernos liberais é ainda tema de discussão.
No entanto, é consenso que sua visão, do momento em que vivia, era absolutamente original. Em grande medida porque fugia das perspectivas utópicas que caracterizavam, no seu tempo, o estudo dos fenômenos sociais e políticos em curso. Ao contrário de muitos, que projetavam sobre a narrativa histórica ou filosófica uma utopia social que se realizava ou era derrotada nas circunstâncias das ações humanas, Tocqueville identificava, e narrava, as ações conscientes humanas no exercício de suas vontades. E, acima de tudo, como afirma Sheldon Wolin, ele viajava, como o faz na América, numa “sociedade real”.
No seu extraordinário estudo Democracia na América, encontramos, dessa maneira, um intérprete contemplativo. A sua percepção e encantamento com a realidade se impõe à qualquer visão prévia sobre o processo contemplado. No entanto, parece claro que, sendo versado, ou não, na tradição filosófica antiga, pensamos em Aristoteles, principalmente, Tocqueville se aproxima, sem dúvida, da tradição clássica e do essencialismo. Quando se dedica ao tema das origens e da natureza dos processos históricos, pensa todo esse movimento como dotado de uma substância que se realiza em evento e se desdobra temporalmente. E entende a história das sociedades como a transfiguração de “primeiros movimentos”, ou de essências que se formam a partir de alguma razão, em grande parte misteriosa, que adquire dimensão no tempo.
Assim, Louis Hartz chamou a atenção para o fato de Tocqueville ver na América a oportunidade de investigar como se formavam e se desenvolviam as nacionalidades, pois na recente história da formação dos Estados Unidos tinha a oportunidade de contemplar a emergência de uma identidade coletiva que se definia como nação.
"A América”, escreveu, "é o único país em que se pôde assistir aos desenvolvimentos tranqüilos e naturais de uma sociedade e em que foi possível precisar a influência exercida pelo ponto de partida sobre o futuro dos Estados.”
A ausência do feudalismo, por exemplo, permitia, na visão do pensador francês, afirmar que a América não era portadora de uma genuína tradição revolucionária. Pois lhe faltava, na sua prática de organização institucional, a herança dos conflitos sociais que marcaram, por exemplo, a França. O que lhe acontecia, ao longo do tempo, portanto, tinha determinadas características que remetiam a esses elementos essenciais, a esse ponto de partida cuja realidade era visível aos contemporâneos. E sob tal influente observação George Satayana, por exemplo, pode entender o liberalismo e a democracia americanas como fenômenos naturais. Isto é, poderíamos dizer, expressões inevitáveis de uma certa virtude formativa.
A célebre afirmação de Tocqueville, no Democracia na América, aponta os elementos centrais dessa sua tese:
"Os povos sempre se ressentem de sua origem. As circunstâncias que acompanharam seu nascimento e serviram para seu desenvolvimento influem sobre todo o resto de sua carreira. Se nos fosse possível remontar até os elementos das sociedades e examinar os primeiros monumentos de sua história, não duvido de que pudéssemos descobrir aí a causa primeira dos preconceitos, dos hábitos, das paixões dominantes, enfim de tudo o que compõe o que se chama caráter nacional. Poderíamos encontrar a explicação de usos que, hoje em dia, parecem contrários aos costumes reinantes; de leis que parecem em oposição aos princípios reconhecidos; de opiniões incoerentes que aparecem aqui e ali na sociedade, como esses fragmentos de correntes rompidas que às vezes ainda vemos pender nas abóbadas de um velho edifício e que não sustentam mais nada. Assim se explicaria o destino de certos povos, que uma força desconhecida parece arrastar para um fim que eles mesmos ignoram".
Esses elementos fundadores não podem ser totalmente distinguidos claramente no caso da França, porque é uma sociedade de origem muito antiga e os elementos que a formaram são de difícil apreensão para os historiadores e arqueólogos. No entanto, mesmo assim, pairam misteriosos sobre o seu presente diversos elementos que condicionam o momento da França, e que, apesar de todas as tentativas internas ou externas, já feitas, de interferir e alterar o seu destino, de todas as influências que chegam mesmo a modificar elementos aparentemente definidores de uma identidade, continuam estabelecendo um determinado fim, um perfil e uma identidade no agora. Não é o caso, no entanto, da América, onde esses elementos são visíveis no exato momento em que se articulam e se formam.
Tocqueville dava grande importância, no caso dos Estados Unidos, a alguns pontos determinantes presentes no seu “ponto de partida”: A língua inglesa, as querelas religiosas, a questão da independência comunal, a das preocupações puritanas com a escolaridade. Esses elementos estabelecem movimentos que arrastam a sociedade americana na direção do futuro, num sentido que, com o tempo, a mesma sociedade não se dá mais conta que é sentido, porque tais elementos se tornaram substância ou virtude de sua história ou da forma de ser no momento. É preciso, por exemplo, um pensador de esquerda como Richard Hofstadter, lembrar que a Universidade de Harvard, fundada em 1636, já era crítica da tradição universitária européia, porque foi moldada a partir exclusivamente daquele momento fundador, sem qualquer relação com formas medievais de produção de conhecimento. Donde sua imensa capacidade de sair à frente no desenvolvimento da ciência iluminista. Mas tal fenômeno, entendido como virtude de uma dada instituição, se explica pelo primeiro movimento, pelo ponto de partida de todo um sistema social e político.
As sociedades possuem, assim, um sentido, determinado pela sua origem, da mesma maneira que as formas do mundo possuem suas substâncias? O tema não pode deixar de ser tratado pelos historiadores e filósofos que se dedicam à meditação sobre as realidades que emergem em sociedade ao passar do tempo e nos espaços. Pois as sociedades que adquirem identidade não adquirem identidades gerais, mas identidades específicas, e sua dinâmica histórica é sempre condicionada por essas características.
Tocqueville era muito pessimista sobre as sociedades da América do Sul, de “riquezas intactas e inesgotáveis”, mas que não podem “suportar a democracia”, “não há na terra nações mais miseráveis que as da América do Sul”. "A guerra civil e o despotismo desolam hoje essas vastas regiões”. E, de fato, podemos também estabelecer um juízo sobre essas sociedades a partir de seus princípios? De seus “pontos de partida”? Parece evidente propor que a mesma feliz singularidade dos EUA, que emergiu de forma original, é também de algumas nações sul-americanas. Mas não de todas, evidentemente. Não parece, por exemplo, que os povos andinos não possam ser explicados senão remetendo a origens anteriores, aos Incas e além, e a diversos e complexos mecanismos de interação com o conquistador espanhol que tornam o entendimento dessas sociedades bem diferente do entendimento das origens dos EUA. E nos parece ser esse o caso do México e de alguns países da América Central também, que carregam a determinação de antigos impérios: os maias e os astecas.
Mas o caso do Brasil pode sim ser considerado como análogo ao caso americano. Não escapa, aos nossos pensadores do Brasil, essa percepção da existência de um sentido. É curioso, no entanto, que um dos fundadores da historiografia marxista, Caio Prado Júnior, tenha afirmado que
“todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo 'sentido'. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem. Quem observa aquele conjunto… não deixará de perceber que ele se forma de uma linha dirigida sempre numa determinada direção”.
É curioso porque Caio Prado foge, aqui, da perspectiva rara e especial que poderia lhe dar uma outra percepção das origens do Brasil - ao contrário de Tocqueville, que aproveita a possibilidade de contemplar a singularidade de uma nação que vai surgindo diante dos contemporâneos, Caio Prado recusa afirmar a originalidade do país, assinalando que suas realidade e natureza de sentido não estão nele, mas sim na Europa, em Portugal e em suas ações de conquista e exploração. Seu olhar é deformado pela utopia revolucionária e isso influencia a historiografia posterior, que se absteve de contemplar uma substância específica que foi se tornando realidade histórica, isto é, o Brasil, com suas características. Este guarda, em sua dinâmica fundadora, muitas analogias com o surgimento dos EUA, principalmente, ao emergir de uma situação de desleixo e abandono, ao ser projeto não inicialmente pensado, ao derivar de um Portugal nem sempre interessado, de índios frágeis e seminômades , portugueses desenraizados, cristãos-novos e velhos, africanos de diferentes origens e jesuítas crentes.
Outros pesquisadores, com mais felicidade, como Oliveira Viana, lograram contemplar, no Homem brasileiro do período colonial, especialmente o do interior do sudeste, aquele espírito fundador da “têmpera branda e cordata” e do “espírito conservador e prudente” que caracteriza o povo desta nação, que expressa uma "força desconhecida”, a citar Tocqueville, que "parece arrastar-lo para um fim" que o próprio povo brasileiro ignora.
O Brasil, como os EUA, emerge praticamente do vazio, numa junção de povos que não tinha, como no Império Inca ou no Asteca, uma estrutura cultural prévia capaz de fornecer elementos prévios determinantes de sentido. O Brasil é também um país que foi parcialmente esquecido durante seus anos formadores, em grande parte devido às fragilidades da Igreja portuguesa e ao caráter bastante leniente da organização política colonial. O estudo sobre as origens do Brasil, considerando-as como compreensíveis, pode, a acompanhar Tocqueville, nos dar indicações sobre sua natureza e seu sentido. Há um mistério do Brasil que merece ser abordado, na direção do entendimento de suas particularidades e origens, na discussão de seu destino. Procuramos realizar um primeiro estudo sobre isso em nosso O despertar do sentido, formação espiritual do Brasil das origens aos finais do século XVIII.
A importância de Tocqueville, portanto, no seu movimento de meditação contemplativa dos elementos que formam as sociedades, é relevante para entender o sentido das nacionalidades. Especialmente para aquelas sociedades, como a brasileira, cujo ponto de partida está próximo de nós. Sua meditação nos convida à ponderação, nesses tipos originais de sociedade, dos elementos humanos dispostos socialmente no tempo cujas identidades associativas foram frágeis ou precisaram ser novas para garantir sua sobrevivência e existência, já que no Brasil, como bem escreveu Brandônio, um cronista do século XVII:
"os povoadores que primeiramente vieram a povoar o Brasil, pela largueza da terra deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no reino os faziam usar. E os filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra, despiram a pele velha, como cobra”.
A perspectiva de Tocqueville nos convida ao estudo da sociedade brasileira da maneira como foi construída em sua originalidade, principalmente a partir do exercício da liberdade de escolha das pessoas envolvidas na sua gênese. Se as ações pombalinas e, depois, os atos Joaninos, construíram um arcabouço institucional capaz de tornar esse sentido em Estado nacional, isso nunca significou que tais elementos formadores tivessem sido abolidos ou deixado de ser decisivos. Os primeiros habitantes do Brasil experimentaram uma experiência singular, cimentada por uma Fé particular, um tanto caótica, mas cristã, e a partir desta exerceram sua liberdade de construção de sentidos.
As particularidades desse processo formador, se levarmos em consideração Tocqueville, determinaram um destino, para o qual as pessoas nem sabem que se dirigem. Mas que está relacionado a um sentido que aqui foi articulado a partir das decisões daqueles que, nos séculos XVI e XVII, tiveram que resolver seus problemas de identidade, para que pudessem sobreviver num mundo de inúmeros perigos e desafios.
Edgard Leite no I Congresso Tocqueville, 7 de junho de 2024