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Freud e a transitoriedade do mundo


Em 1916 Sigmund Freud publicou um pequeno ensaio, chamado Transitoriedade. Nesse texto ele se lembrou de uma conversa que teve com dois amigos durante um verão agradável na região dos Alpes italianos, provavelmente em 1913. Um de seus amigos, um poeta (há quem diga tratar-se de Rainer Maria Rilke), era perturbado com "o pensamento de que toda essa beleza estava destinada à extinção, que desapareceria com o inverno, bem como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar".


Em resposta a essa angústia, própria daqueles que estão envolvidos com a transitoriedade das coisas e não  acreditam na eternidade, Freud escreveu seu ensaio, a partir do qual esboçou parte de sua teoria sobre o luto.


No que nos interessa, cabe observar que Freud corroborou uma tese específica, que surgiu com o Iluminismo e que convergia, de uma forma curiosa, com algumas similares perspectivas budistas: "esta exigência de imortalidade” sustentou, a partir da frustração e sofrimento do poeta diante da transitoriedade do mundo, "é um produto dos nossos desejos, demasiado evidentes [em sua fragilidade] para poderem ter direito à realidade”. O combate ao sentimento da eternidade, portanto, encontrou em Freud aquele mesmo argumento que Buddha expressou em Varanasi mais de dois mil anos antes: o desejo pela continuidade é derivado de uma incompletude real, e é ele que fundamenta a ideia de que as coisas, ou, principalmente, nós mesmos, devam ser eternas.


Essa afirmação freudiana parece uma resposta direta a Eclesiastes, 3:11: gam et haolam natan balibam, "colocou [Deus] nos corações dos homens a eternidade”,  isto é, à tese bíblica de que o homem deseja, ou anseia, a eternidade de forma natural, porque a tem dentro de si, isto é, sabe de sua realidade. No entanto, deve-se anotar que a crítica de Freud é mais estreita que a de Buddha, que considerava todo o desejo humano como fonte de sofrimento. Freud, evidentemente, não desqualificava todo desejo, mas apenas os desejos pelo imaterial, no caso, pela imortalidade ou eternidade. Os desejos pelo material existem e possuem um papel qualquer na relação do Homem com o mundo. O importante, aqui, é que ambos concordavam que esse desejo pela eternidade era insustentável pela razão, sendo hostil à felicidade humana.


Esse apreciação sobre a natureza da vontade (em direção ao imaterial, irreal, e voltada ao material, real ), entendia o Homem como exclusivamente compreensível a partir das coisas da transitoriedade. Freud colocou assim seu próprio tijolo na construção de uma existência humana desprovida da percepção do miraculoso. Mas, mais do que isso, nesse texto, Freud ainda foi além:  "no que diz respeito à beleza da Natureza, cada vez que esta é destruída pelo inverno, volta a aparecer no próximo ano, de modo que, em relação à duração das nossas vidas, pode de fato ser considerada eterna".


Freud nega a realidade do eterno, abandona-o, mas não deixa o poeta sem resposta. Para ele um tipo de eternidade está presente no “eterno retorno" das coisas. Platão teria dito que os ciclos não não são eternidade, mas imagem desta. Mas Freud entendeu que o ciclo das estacões, o permanente retorno da beleza da paisagem alpina, é eterna, ao menos “na duração de nossas vidas”.


Não nos pode escapar a influência desse pensamento sobre as ideias que Foucault e Deleuze, por exemplo, têm sobre o tempo, nas quais tudo sempre retorna, usualmente com novos pensamentos. Mas também não nos pode deixar de ser claro que a tristeza contida nesse tempo freudiano que é apenas mudança e que retorna permanentemente, da mesma maneira e sempre com as mesmas questões, diferentemente respondidas, ata o homem continuamente aos seus problemas e à permanente dor da transitoriedade. Não há escapatória diante desse tempo, e o desafio é disfarçar o sofrimento e a dor, seja tornando-os parte integrante da natureza da pessoa e de suas relações, seja anestesiando-os até a impossibilidade da sua sensação.



Ver FREUD, Sigmund: “On transience” in FREUD, Sigmund: The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud, vol. XIV (1914-1916). London, The Hogarth Press, 1957. p. 305.


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