
Num artigo, particularmente influente, na revista Philosophy of Science, (69, setembro de 2002), Carol Cleland argumentou que "os cientistas estão bem cientes das diferenças entre a ciência experimental e a histórica no que diz respeito ao teste de hipóteses". Cleland citou Henry Gee, editor da Nature, quando esse afirmou que "as hipóteses históricas nunca podem ser testadas por experimento e, portanto, não são científicas, Nenhuma ciência pode ser histórica". A prova de uma hipótese requer experimentação.
Não há a menor possibilidade de repetir-se um acontecimento histórico e, portanto, testar uma hipótese sobre um determinado acontecimento passado e prever sua nova ocorrência. O colapso das teorias científicas da história, ao longo do século XX, decorreu, entre outras razões, do fato de que nenhuma previsão, feita por historiadores do XIX, se verificou. Embora, por outro lado, tenha ficado claro que as brutalidades do século passado foram justificadas precisamente pelas crenças nas diferentes cientificidades da história: as raciais, as sociais, as econômicas. Como nada ocorria como previsto, era necessário exterminar fisicamente o dissonante.
Inúmeros pensadores, no pós II Guerra Mundial, como Jean-François Lyotard, Isaiah Berlin, Karl Popper e Michel Foucault, apontaram a impossibilidade de se encontrar, na história, leis que lhe permitam o controle ou a previsão, como ocorre com as leis de movimento. A História lida com o contigente e a ciência com o universal.
Mas se a História não é ciência, o que é? Qual o seu objeto? Todos os instantes estão interligados entre si por uma rede de causas vagamente percebidas. São fluxo contínuo e seu sentido é de difícil percepção para a pessoa que individualmente os vive. E ainda de mais complexo entendimento o é para grupos maiores e sociedades, cujas lideranças manifestam contínua ignorância sobre a natureza do rumo dos acontecimentos..
O epicentro dos eventos históricos está nas pessoas e nas suas decisões, e não se sabe como estabelecer com certeza a importância dos atos, ou a forma como estes influenciam outros atos ou seu preciso peso sobre os diversos componentes do momento em escalas mais amplas de relações. Há muitos fatores atuando no instante: neste estão presentes seres invisíveis, outras formas de vida, fenômenos tectônicos, ou externos à terra e eventos estranhos à materialidade. Apenas ao longo da contagem dos momentos alguns alegam que podem ter uma visão qualquer (embora sempre parcial e frágil) da dinâmica dos movimentos das pessoas, ou de seu sentido.
Se se chega a uma conclusão de que algo está acontecendo que mobiliza muitas pessoas e transforma inúmeras vidas de uma maneira mais decisiva ou mais intensa, ao longo do tempo, já se pode escrever algo sobre o assunto. Mas há eventos históricos, alguém dirá, atuando em diferentes camadas: dentro da minha vida, dentro da minha família, dentro do meu bairro, na minha cidade, no mundo. Outros podem dizer que a todo momento as vidas de todos são transformadas.
Alguns historiadores se preocupam, portanto, com eventos que envolvem multidões e que transformam instituições ou sociedades. Muitos se angustiam com a solidão humana e a sua perplexidade diante de um mundo de causas materiais opressivas. Outros refletem sobre a relação do Homem com a eternidade ao longo do tempo e sua experiência dramática diante da transitoriedade das coisas.
A bomba de Hiroshima, em 1945, afetou toda a humanidade, embora evento local. A sua percepção foi imediata, na medida em que as informações sobre seu acontecimento foram sendo difundidas. Já a Conferência de Wannsee, que decidiu pelo extermínio dos judeus da Europa, em 1942, só se tornou evento histórico quando sua ata foi descoberta no pós-guerra e alguns historiadores mostraram, aos poucos, sua importância. Tivessem todas as cópias das atas da reunião sido destruídas, não existiria qualquer menção segura sobre esse encontro. Mas o que esses acontecimentos de fato significam?
Não há uma motivação para isso que não a decisão do historiador, que pensa e busca conhecer. E o que a orienta? O historiador é orientado pelas suas intenções de momento, já que não pode realizar experiências com o tempo. Estas intenções podem ser moldadas pelas circunstâncias imediatas: privadas, públicas, particulares, gerais. Transmudadas em uma argumentação teórica qualquer. Podem buscar algo maior, a eternidade, valores superiores e a partir destes construir argumentos que explicam o deslocamento das pessoas pelos instantes a partir da associação entre materialidade e imaterialidade.
Em ambos os casos, o historiador atravessa a densa e difícil barreira das memórias e dos documentos e daquilo que se diz no presente, para alcançar algo que lhe parece verdadeiro no passado. Como certa vez refletiu Jacques Matitain: há aqui um problema a ser resolvido? Ou apenas um mistério a ser contemplado? Isto é, o que o historiador tem diante de si: um problema ou um profundo e contínuo mistério?
Como sempre excelente! Amo ler seus textos, Edgard.
Professor tô amando os temas que produz vou ter que tomar dopamina