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Desafios da medicina de precisão


Edgard Leite Ferreira Neto

Texto da conferência proferida no I simpósio internacional em medicina de precisão, evento realizado no fórum de ciência e cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


1- O que é "medicina de precisão"?


A tese fundadora da medicina é aquela, proposta, inicialmente, por Hipócrates (460- 370 a.C.): as doenças são derivadas de causas naturais e não sobrenaturais. Isto é, a cura pode estar ao alcance dos humanos, quer por conta da possível descoberta das causas das patologias, quer pela utilização de procedimentos terapêuticos adequados para neutralizá-las ou administrá-las.


O conhecimento do paciente, da dinâmica de seu comportamento fisiológico e de sua relação com o meio foi entendido como elemento essencial na prática médica por essa tradição antiga, consolidada por Galeno (c. 129- c. 217. d.C.) no limiar da era cristã (2)


A ideia de uma medicina de “precisão”, ou “personalizada”, é parte integrante de qualquer horizonte clínico, portanto, na medida em que a tradição médica estabeleceu como um dos fundamentos da prática terapêutica a consideração das particularidades do paciente. Pitágoras (c 570- c 495 a.C.), por exemplo, em período anterior a Hipócrates, já tinha anotado esse caráter personalizado do diagnóstico ao observar que apenas alguns indivíduos, e não todos, “desenvolviam uma reação fatal após ingerirem favas“(3). Essa antiga observação sinaliza o fato de que, apesar de todos os elementos que permitem, ao clínico, generalizar tratamentos comuns para similares diagnósticos, as patologias possuem dimensões individuais que devem ser observadas e consideradas.


Personalizar a medicina é tendência histórica, portanto. A partir do século XIX tornou-se importante o estabelecimento de listas de sintomas e tratamentos gerais (4). Mas isso não significava que o objetivo do tratamento não fosse sempre o de encontrar o “medicamento certo para o paciente certo”(5).


O termo “medicina de precisão”, como bem anotou Jain Kewal, é usado porque, desenvolvendo a mais fundamental abordagem histórica da medicina, os “diagnóstico, prognóstico e estratégias terapêuticas”, devem ser "estabelecidos de forma precisa para a necessidade de cada paciente”(6). No entanto, considerando o desenvolvimento atual da ciência e da tecnologia, isso se estende para além do puro exercício da personalização no campo da experiência generalista, mas processa, como nunca antes, um conhecimento de realidades individuais que antes eram invisíveis aos procedimentos clínicos normais, e que se encontram na esfera molecular.


O assunto, hoje, suscita a questão, levantada por Barbara Prainsack, se as doenças devem ser, cada vez mais, entendidas como individuais, na medida em que as versões correntes da medicina de precisão dão atenção "a inumeráveis diferenças entre pacientes e os meios pelos quais as doenças os afetam”. Isso pode, eventualmente, levar à conclusão extremada de que há tantas doenças quanto existem pessoas(7). O tema, em si, não é estranho, pois os homeopatas unicistas do século XIX sustentavam, exatamente, embora por caminhos teóricos diferentes, a necessidade de tratar as patologias exclusivamente numa perspectiva individual e apenas com um único medicamento.


A forma atual de entender o problema deriva, no entanto, do desenvolvimento dos estudos de genética, isto é, aqueles que dizem respeito ao entendimento "das origens” das formas viventes. No caso, que é "focado na análise estrutural dos genes, na elucidação de sua relação funcional com seus produtos e a regulação de sua expressão” no âmbito de uma teoria de "hereditariedade e desenvolvimento"(8). Esses estudos levantam, de forma contínua, surpreendentes e misteriosas realidades e questões que dizem respeito à intimidade fisiológica do ser e de suas patologias.


2- A descoberta do mundo dos genes.


Cabe-nos aqui, de forma geral, lembrar que a atual circunstância dessa personalização do diagnóstico é fruto de especulações e pesquisas que se aceleraram nos últimos dois séculos.


A partir do século XVIII discutiu-se muito sobre a origem do embrião humano e a natureza de seu desenvolvimento. Pretendia-se entender aquilo que, geneticamente, o torna diferente, sendo, ao mesmo tempo, igual a outros, enquanto Homem. Inúmeros debates foram travados sobre como seria possível a transmissão de características hereditárias e como essas se tornavam originais em cada um. E, principalmente, se o ser já estava pronto desde o primeiro momento, ou antes do primeiro momento, como sustentavam os preformistas (9), ou se se tornava algo ao longo de um enigmático processo de formação. Uma longa tradição, que vinha de Hipócrates, defendia que os seres humanos eram maleáveis em seu desenvolvimento e suas características podiam ser transformadas sob o efeito de circunstâncias externas, o que caracterizava uma fundadora e antiga defesa de concepções denominadas epigenéticas(10), mais adequadas ao que se observava na realidade.


Charles Darwin (1809-1882), preocupado tanto com a continuidade quanto com a transformação contínua das formas vivas, concebeu a hipótese da existência das gêmulas, pequenas partículas oriundas em células modificadas pelo meio, que retinham suas características, circulavam pelo corpo e acumulavam-se em células germinais inserindo nelas um material que era transmitido hereditariamente (11).


As questões da hereditariedade e genética, no entanto, passaram a ter uma perspectiva científica mais consistente a partir dos estudos fundadores de Gregor Mendel (1822-1884) e de seus intérpretes ou continuadores. Tanto no sentido de entender melhor os mecanismos pelos quais as características próprias do indivíduo são transmitidas e sua singularidade é construída quanto pelo fato de que, com o desenvolvimento do microscópio, tornou-se possível conhecer a estrutura da célula e os cromossomos. Nesse período foram cunhadas a maior parte das expressões centrais da genética: o próprio termo, genética, e os conceitos de gene, alelo, genótipo e fenótipo, por exemplo (12). Foram estabelecidas, assim, teorias mais precisas sobre os mecanismos de transmissão de características genéticas e avançou-se um pouco mais sobre o problema da natureza das particularidades individuais.


Concluiu-se, naqueles primeiros anos do século XX, principalmente a partir do clássico Mecanismo da hereditariedade mendeliana, (1915-1922) (13) que, entre outras coisas, os cromossomos são os portadores do material genético, os genes são as unidades fundamentais da hereditariedade, organizados de forma linear nos cromossomos, que fatores ambientais podem influenciar os efeitos de alguns genes e que alguns deles modificam os efeitos de outros (14). Mas não havia ainda clareza sobre a realidade disso tudo.


Thomas Morgan, ao receber o Prêmio Nobel, em 1933, precisamente pelas suas pesquisas sobre o papel dos cromossomos na hereditariedade, perguntou, de forma reflexiva, se os genes eram “uma unidade hipotética ou uma partícula material”(15). Não sabendo dar, então, uma resposta.


3- A genética e suas ambiguidades.

Hoje sabemos, como refirmou Jean Gayon, que "as macromoleculas denominadas como genes (e também proteínas) possuem uma estrutura atômica precisa e definida e uma configuração espacial”(16). Mas, mesmo assim, persiste, como apontou Sahorta Sakar, uma “surpreendente ambiguidade” na maior parte dos termos da genética (17) e, especificamente no caso dos genes, “a relação entre a identidade do gene e sua identidade como unidade estrutural tornou-se crescentemente controvertida”(18). De fato, “quanto mais os biólogos moleculares estudam sobre os genes, menos seguros eles parecem estar sobre o que eles realmente são”(19). Essa experiência do mistério da genética é presença constante, portanto, no avanço do conhecimento. E é um importante desafio da medicina de precisão.


O sequenciamento do genoma humano, entre 1990 e 2000 acrescentou um volume imenso de questões à investigação científica. Porque "o conhecimento sobre a estrutura e o funcionamento dos genes é abundante, mas também o gene tornou-se curiosamente intangível”. Por exemplo, segundo Peter Beurton, Raphael Falk e Hans Rheinberger:


"agora parece que as enzimas de uma célula são capazes de manipular ativamente o DNA para fazer isto ou aquilo. Um genoma consiste em grande parte de elementos genéticos semiestáveis que podem ser reorganizados ou mesmo movidos no genoma, modificando assim o conteúdo de informação do DNA. Pedaços de DNA podem ser induzidos a compartilhar a codificação de diferentes unidades funcionais em resposta ao ambiente do organismo. Tudo isso faz com que a demarcação de um gene dependa em grande parte do aparato regulador da célula. Em vez de fatores finais, os genes começam a parecer produtos temporários dificilmente definíveis da fisiologia de uma célula. Freqüentemente, eles se tornaram entidades amorfas de existência obscura, prontas para desaparecer no cenário genômico ou de desenvolvimento a qualquer momento” (20).


Os problemas de genética se tornam crescentemente complexos. Existe um programa genético em cada um de nós? As posições deterministas (que afirmam sermos determinados pela nossa realidade genética) fazem sentido? É evidente que existem circunstâncias "onde a posse de um alelo específico parece garantir a posse de uma característica específica”(21). A existência dessa correspondência é evidente e foi tornada clara por Mendel. Mas nem sempre é assim. A relação entre genótipo e fenótipo é muito complexa. Acima de tudo porque é bem difícil definir o que é exatamente fenotípico. “A densidade do corpo é fenotípica? O número de lágrimas derramadas numa vida o é?”(22) Se pergunta Sarkar.


Há um conjunto ainda impreciso de fatores que atua na realização do fenótipo, que reforça uma dada perspectiva epigenética, evidentemente, mas o faz num âmbito extremamente complexo. E entendemos aqui a epigenética como o estudo das “propriedades emergentes na origem do fenótipo” e as transformações no seu desenvolvimento (23). Assim, embora exista um DNA definido, há inúmeros elementos que atuam no mecanismo de expressão genética (24).


"O genoma não é”, portanto, "um controlador interno, mas tornou-se uma estrutura reativa inserida num ambiente mais amplo”(25). Tal plasticidade no desenvolvimento do ser é um permanente desafio no entendimento das particularidades das patologias dos indivíduos, considerando que o fenótipo se configura de maneira tendencialmente singular. Pode-se argumentar em prol da possibilidade de prever as respostas adaptativas, a formação do fenótipo, através de um sistema que permita algum controle sobre tal movimento, o que poderia, entre outras coisas, fundamentar um tratamento de precisão de patologias mais eficaz. Mas tal sistema deveria reunir uma quantidade imensa de fatores, muitos dos quais desconhecidos.


Deve ser anotado, no entanto, que nesse complexo terreno, o conhecimento dos elementos moleculares que tornam os humanos, humanos, e os indivíduos humanos, humanos particulares, nunca foi tão ampla. E assim pode-se apontar que o mal-estar diante das favas, observado por Pitágoras na antiguidade, é fruto de uma desordem genética herdada que impede o organismo de produzir glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD), uma enzima protetora.


4- Desafios éticos da medicina de precisão: eugenia, estatísticas, liberdade.


Vários desafios éticos são configurados, no entanto, numa medicina que se aprofunda nessa personificação e que busca uma precisão terapêutica capaz de dar conta desses elementos misteriosos e complexos que vão dos genes à aparência. E que são, assim, individuais, e, portanto, privados, íntimos.


Desde o primeiro momento em que se tornou clara uma realidade epigenética, tornou-se também possível pensar um movimento qualquer para influir em tal processo. Trata-se de uma tentação compreensível, pois se temos algum conhecimento de tal realidade epigênica, porque não manipulá-la em favor do paciente, aprimorando a sua fisiologia, ou curando definitivamente as patologias e impedindo sua transmissão hereditária? A eugenia, como a pioneiramente definiu Francis Galton (1822-1911) remete à possibilidade de produzir, com o engenho humano, um "bom nascimento" e um "bom desenvolvimento do ser". O tema não era novo e vinha da antiguidade clássica, onde, de forma intuitiva, se considerava possível influenciar de alguma forma o desenvolvimento fisiológico (e mental) das pessoas nesta e em futuras gerações (26).


A transformação desse movimento em política pública, na primeira metade do século XX foi, como se sabe, um movimento desastroso. Pois como bem anotaram Dorothy Wertz e John Fletcher,


"O problema da eugenia surge quando se considera quem tem o poder de decidir o que deve ser evitado. Quem define o que constitui um “defeito de nascença”? Quem decide quais medidas de prevenção devem ser utilizadas, se houver? Alguns profissionais individuais, formuladores de políticas públicas, grupos étnicos e famílias individuais podem considerar que vale a pena evitar uma determinada condição genética através da interrupção da gravidez; outros podem considerar essa mesma condição aceitável” (27)


Parece evidente, na genética contemporânea, um deslocamento para a intimidade fisiológica que, em si, não apresenta nenhum malefício. Ao contrário, é absolutamente necessária do ponto de vista terapêutico e é natural da medicina. No entanto, tal movimento pode representar, na medida em que se estabelecem avaliações ideológicas específicas ou juízos pretensiosos, uma intrusão descabida em processos cuja real natureza ou é muito complexa ou, simplesmente, é desconhecida. Tal movimento pode também implicar numa desqualificação da capacidade da consciência individual de decidir sobre sua própria realidade ou realidades hereditárias futuras.


O extremo desse movimento, a execução sistemática de indivíduos considerados incapazes, por inúmeras razões, na Alemanha entre 1933 e 1945, colocou a lógica eugenista numa situação delicada, e os riscos da utilização do conhecimento adquirido e utilizado pela medicina de precisão devem ser ponderados diante dessa experiência histórica. E por isso a eugenia, em seus primórdios, foi condenada por pensadores católicos como G.K. Chersterton, que ficou horrorizado com a Lei de Deficiência Mental de 1913, votada no parlamento britânico. Ele entendeu a Eugenia como uma perigosa forma de tirania, legitimada pela ciência(28). Jurgen Habermas, quase cem anos depois, afirmou que numa sociedade democrática práticas eugênicas não podem ser normalizadas, porque as “disposições desejáveis não podem ser a priori dissociadas do julgamento de específicos projetos de vida”(29). Isto é, o espaço da liberdade individual deve ser garantido independente de qualquer avaliação dominante. O tema da liberdade humana de tomar decisões, portanto, está aqui colocada de maneira muito grave.


Parece-nos que, nesse sentido, a prática clínica da medicina de precisão deve examinar a possibilidade de se afastar de uma narrativa fundada exclusivamente na autoridade científica e fundamentar sua prática na informação e diálogo. O paciente deve saber que o tratamento das disfunções de fundo genético possui dimensões estatísticas, tratando mais de possibilidades do que de certezas, e que questões psicossociais, morais e éticas devem ser consideradas na sua aplicação, por quem a recebe e por quem a executa. O que pode significar, entre outras coisas, que a utilização de tecnologias genéticas tenha o potencial “de aumentar, mais do que reduzir, o sentimento de ansiedade sobre o futuro”(30), o que poderia implicar num certo distanciamento dos objetivos das terapias tradicionais. Como nunca, portanto, a medicina de precisão exige uma plataforma ética muito clara e uma conduta muito correta do cientista e do clínico, ou seja, o amadurecimento e o desenvolvimento de um protocolo eficiente que harmonize a liberdade e os valores humanos com a necessidade de cura (31).


O problema da privacidade também ressurge, com muita intensidade nesse assunto. Mesmo porque é na privacidade que reside a potência da liberdade. O artigo 11 do Código Civil brasileiro assegura que os “direitos de personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis”.


É evidente que a utilização de informações genéticas individuais, inseridas nos "direitos de personalidade", são, no entanto, fundamentais para o desenvolvimento da medicina de precisão. Assegurar que essas informações não sejam tornadas públicas é um grande desafio. Principalmente no sentido de preservar o indivíduo de retaliações, sociais, políticas, pessoais. Ou seja, o Homem deve ser protegido da possível utilização de suas informações privadas por políticas diversas discriminatórias que venham a prejudicar os seus caminhos no sistema de saúde, público ou privado. E também deve ser blindado diante de eventuais e surpreendentes transformações políticas, comuns na história. Se os seguros de saúde podem se tornar hostis, ao dispor de determinadas informações, específicos grupos de opinião, e mesmo o Estado, em certas circunstâncias, podem tronar-se letais.


A extinta instituição britânica Human Genetic Commission, recomendou, nesse sentido, que


"(a) Através do princípio da privacidade, ninguém pode ser forçado a divulgar Informação genética.

(b) A obtenção de informações genéticas requer o consentimento dos indivíduos envolvidos.

(c) A informação genética pessoal deve ser confidencial e não deve ser divulgada a terceiros sem consentimento.

(d) Através do princípio da não discriminação, ninguém deve ser injustamente discriminado com base em características genéticas" (32).


Propostas de gestão de dados que criem mecanismos que garantam a privacidade na coleta de informações genéticas são frequentes, mas o sistema exige um controle contínuo dessa gestão por entidades comprometidas, e, principalmente, um significativo compromisso ético e moral dos envolvidos em tais processos. Estamos aqui diante não apenas de um dilema ético, mas também diante de um momento característico da interação entre o homem e o desenvolvimento tecnológico, que, como bem anotou Deane-Drummond, coloca dilemas que “podem nos transformar enquanto pessoas”(33). Ou, diríamos nós, descaracterizar-nos como humanos. A tecnologia e suas razões não podem, evidentemente, se sobrepôr à capacidade humana de discernimento. Isto é, não podem suprimir a liberdade humana, mais do que nunca, como neste caso, repousando sobre a preservação de sua intimidade e definindo sua humanidade.


Outro aspecto, por fim, relacionado a este último, diz respeito aos riscos envolvidos na utilização de novas tecnologias e tratamentos. Isso se aplica às inovações médicas como um todo, evidentemente. E é questão ponderada desde o século XVIII, quando o caráter experimental científico e o pensamento iluminista começaram a fazer-se ouvir no cotidiano terapêutico. O risco passou a ser ponderado, normalmente, numa dimensão estatística.


Isso tornou-se evidente no decorrer dos debates sobre a vacina de varíola em primórdios do século XVIII, por exemplo, quando o médico Thomas Nettleton (1683-1742) pioneiramente argumentou "que os médicos devem calcular a utilidade de práticas específicas equacionando os custos e benefícios entre uma população de pacientes”. No sentido de práticas médicas que atingem muitas pessoas, isso tem sua lógica, evidentemente. Tal inclinação a fazer valer a estatística nas análises de risco de novas terapias tornou-se consolidada nos anos 50 e 60. Nessa época foi realizado o célebre estudo Framingham. Tal pesquisa, desenvolvida por 20 anos na cidade americana de Framingham, atestou, estatisticamente, a relação entre obesidade, pressão sanguínea e colesterol alto com doenças coronarianas (34).


Mas a estatística tem seus problemas, que no caso daqueles que saem fora da curva obesidade-pressão-colesterol não é particularmente grave, pois são saudáveis nesse aspecto, mas o é quando se trata de riscos substanciais à saude daqueles que não são considerados por uma ponderação estatística específica que objetiva introduzir um novo tratamento. O escândalo da vacinação de BCG em Lubeck, Alemanha, entre 1931-2, onde 251 crianças receberam doses de uma vacina oral para tuberculose, levando à morte de 72, e a mais recente tragédia da talidomida no início dos anos de 1960, onde um remédio para enjoo de mulheres grávidas teve efeito teratogênico massivo, mostram que o excepcional, e o extraordinário desconhecido, são sempre desafiadores das estatísticas e das análises de riscos existentes. Em grande medida porque o extraordinário, o surpreendente, é elemento integrante da condição humana, como entendia Heráclito. E é previsível que as estatísticas não deem conta desse fenômeno da vida, essencial, no entanto.


5- A necessidade da prudência.


No misterioso e complexo universo das relações entre os genes e aquilo que somos e nos tornamos, e onde os elementos que transformam um registro em outro não são de todo conhecidos, as responsabilidades do cientista e do clínico são imensas. É claro que a pesquisa científica, a experimentação, as práticas, a clínica, não podem e não devem ser interrompidas. Ao contrário, é exatamente o mistério o elemento motor do processo de conhecimento. Mas considerando o caráter personalizado e preciso desse tipo de medicina, a prudência se impõe. Todo cientista deve ser prudente.


Lembremo-nos do caso do Tamoxifen, uma droga para tratamento do câncer de mama. Uma primeira avaliação indicava que a droga não era indicada para afro-descendentes, apenas para brancos. A FDA vetou-o, portanto, para afro-americanos. Estudos posteriores, no entanto, demonstraram que a ineficiência do produto não estava ligada à cor da pele, mas sim à questões genéticas que não tinham a ver com o específico aspecto fenotípico. Ao lidar com temas tão difíceis, a prudência deve sempre prevalecer, porque se tratam aqui de estatísticas aplicadas a um indivíduo apenas, e o indivíduo é a morada do surpreendente.


A prudência é a virtude que possibilita o discernimento do que é o bem, e como este pode ser atingido. Ela pressupõe, sem dúvida, no caso, um compromisso com a vida, ou, ainda mais, com a qualidade da vida, com a saúde do paciente em toda sua dimensão. É fundada na humildade, no reconhecimento de nossas limitações, nas limitações da própria medicina de precisão, num julgamento sustentado em estatísticas mas, também, em valores. Deve conduzir a uma decisão justa, precisa na direção da realização do bem, mas que tenha condições de ser retificada em função de qualquer erro, igualmente de forma precisa, e isso deve ser ponderado, mesmo que impossível de ser previsto. Esse movimento não nos livra do extraordinário, mas torna as ações, científicas e clínicas, construtores de um sólido caminho de conhecimento capaz de contribuir, para realizar no ser humano, sua realidade substancial.


Notas:

(2) Bynun, William: The History of Medicine: A Very Short Introduction. Oxford University Press , 1988 p.6. Ver também Craik, Elizabeth M. The ‘Hippocratic’ Corpus Content and Context. Routledge 2015.

(3) Kewal K. Jain Textbook of Personalized Medicine Springer Nature Switzerland AG 2021

(4) Prainsack, Barbara: Personalized Medicine: empowered patients in the 21st century? New York University Press, 2017. p. 8

(5) Kewal K. Jain: Textbook of Personalized Medicine Springer Nature Switzerland AG 2021.. pp.2-5

(6) Idem, ibidem.

(7) Prainsack, Barbara: Personalized Medicine: empowered patients in the 21st century? New York University Press, 2017. p. 8

(8) Griffiths, Paul and STOTZ, Karola: Genetics and Philosophy an introduction. Cambridge, 2013 p. 64

(9) Peter J. Bowler: The Mendelian Revolution: The Emergence of Hereditarian Concepts in Modern Science and Society. London, Bloomsbury Academic, 2015. p. 28

(10) William Bynum: The History of Medicine: A Very Short Introduction. Oxford University Press , 1988 p. 14

(11) Gayon, Jean: "From Measurement to Organization: A Philosophical Scheme for the History of the Concept of Heredity”in Beurton, Peter J., Falk, Raphael and Rheinberger, Hans-Jorg: The Concept of the Gene in Development and Evolution Historical and Epistemological Perspectives. Cambridge, 2000. p.71

(12) Burian, Richard and Zallen, Doris: "Genes" in Porter, Theodore and Ross, Dorothy (ed.) The Cambridge history of science, volume 6: The Modern Biological and Earth Sciences. Cambridge, 2008 p. 434- 436

(13) Thomas Hunt Morgan, Alfred H. Sturtevant, Hermann J. Muller, and Calvin B. Bridges, The Mechanism of Mendelian Heredity (New York: Henry Holt, 1915,

(14) Burian, Richard and Zallen, Doris: "Genes" in Porter, Theodore and Ross, Dorothy (ed.) The Cambridge history of science, volume 6: The Modern Biological and Earth Sciences. Cambridge, 2008., p.437

(15) Gayon, Jean: From Measurement to Organization: A Philosophical Scheme for the History of the Concept of Heredity”in Beurton, Peter J., Falk, Raphael and Rheinberger, Hans-Jorg: The Concept of the Gene in Development and Evolution Historical and Epistemological Perspectives. Cambridge, 2000., p. 78

(16) Idem, ibidem, p. 79

(17) Sarkar, Sahotra: Genetics and reductionism. Cambridge, 1998. p.5

(18) Griffiths, Paul and STOTZ, Karola: Genetics and Philosophy an introduction. Cambridge, 2013., p.221

(19) Beurton, Peter J., Falk, Raphael and Rheinberger, Hans-Jorg: The Concept of the Gene in Development and Evolution Historical and Epistemological Perspectives. Cambridge, 2000. P.X

(20) Idem, ibidem.

(21) Sarkar, Sahotra: Genetics and reductionism. Cambridge, 1998., p 10

(22) Idem, ibidem. p. 7

(23) Griffiths, Paul and STOTZ, Karola: Genetics and Philosophy an introduction. Cambridge, 2013. p. 112

(24) Idem, ibidem p. 124

(25) Idem, ibidem. p.106

(26) Deane-Drummond, Celia: Genetics and Christian Ethics, Cambridge University Press, 2006. p. 56

(27) Wertz, Dorothy and Fletcher, John: Genetics and Ethics in a global Perspective. Springer, 2004. P. 45

(28) Chersterton, G. K.: Eugenics and other evils. London, Cassell and Company, 1922 p.76

(29) Habermas, Jurgen: The future of human nature. Cambridge, Polity Press, 2003 p.66

(30) Deane-Drummond, Celia: Genetics and Christian Ethics, Cambridge University Press, 2006.. p. 101.

(31) Kewal K. Jain: Textbook of Personalized Medicine Springer Nature Switzerland AG 2021.. p. 674

(32) Apud Deane-Drummond, Celia: Genetics and Christian Ethics, Cambridge University Press, 2006. p.98

(33) Idem, ibidem. p. 139

(34) Schlich, Thomas: "Risk and medical innovation a historical perspective" in Thomas Schlich Ulrich Tröhler :The Risks of Medical Innovation: Risk perception and assessment in historical context. Routledge 2006. Pp. 4-6




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